Minha mãe leu toda a obra de Monteiro Lobato enquanto nos colocava para dormir. Repito o mesmo hábito com Naran, meu neto, enquanto ele passa as férias conosco. Terminamos “Alice no País das Maravilha”. Começamos “As Aventuras de Pinóquio” de Carlo Collodi (Editora Iluminuras , 2002). Quanto enlevo!
Chegamos ao capítulo XII. Comefogo, o dono de um teatrinho de bonecos, dá de presente cinco moedas de ouro para Pinóquio para que ele as leve para Gepeto, seu pai; e Pinóquio em vez disso, deixa-se enrolar pela Raposa e pelo Gato e vai embora com eles.
O texto é carregado de significados. E as lições servem não apenas para crianças, mas para adultos enredados por espertalhões de todo tipo, inclusive religioso. Muitos continuam a cair na mesma esparrela que Pinóquio.
Ao transcrevê-lo, faço várias conexões com as promessas abundantes do meio em que estou mais familiarizado: igrejas evangélicas.
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No dia seguinte, Comefogo chamou Pinóquio de lado e perguntou:
-Qual é o nome do seu pai?
-Gepeto.
-E o que ele faz?
-É um pobre.
-Ele ganha muito?
-Ele ganha tanto quanto é preciso para não ter nunca um centavo sequer no bolso. Imagine que para comprar minha Cartilha da escola teve que vender a única jaqueta que vestia, uma jaqueta que, entre consertos e remendos, estava caindo aos pedaços.
-Pobre sujeito! Me dá até dó! Eis aqui cinco moedas de ouro. Leve-as logo para ele e mande lembranças de minha parte.
Pinóquio, com é fácil imaginar, agradeceu mil vezes o patrão, abraçou, um por um, todos bonecos da Companhia, até os guardas, e, delirando de felicidade, seguiu viagem para voltar para casa.
Mas não tinha andado nem meio quilômetro ainda quando encontrou pelo caminho uma Raposa manca de uma pata e um Gato cego dos dois olhos, que iam andando devagarinho, ajudando-se um ao outro, como bons companheiros de infortúnio. A Raposa, que era manca, caminhava apoiando-se no Gato, e o Gato, que era cego, deixava-se guiar pela Raposa.
-Bom dia, Pinóquio – disse a Raposa, cumprimentando-o educadamente.
-Como é que você sabe meu nome? - perguntou o boneco.
-Eu conheço bem o seu pai.
-Onde você o viu?
-Eu o vi ontem na soleira da porta da casa dele.
-E o que ele estava fazendo?
-Ele estava só de camisa e estava tremendo de frio.
-Pobre papai! Mas, se Deus quiser, de hoje em diante ele não vai mais tremer!...
-Por quê?
-Porque eu me tornei um rico senhor.
-Você, um rico senhor? - disse a Raposa, e começou a rir com uma risada desengonçada e zombeteira; e o Gato também ria, mas, para disfarçar, penteava os bigodes com as patas da frente.
-Não tem graça nenhuma – gritou Pinóquio ofendido. - Sinto muito se vou deixar vocês com água na boca, mas estas aqui, se é que vocês entendem isso, são cinco belíssimas moedas de ouro. E tirou do bolso as moedas que Comefogo lhe dera de presente.
Ao som agradável daquelas moedas, a Raposa, por um impulso involuntário, espichou a pata que parecia encolhida e o Gato esbugalhou todos os dois olhos, que pareceram duas lanternas verdes, mas logo depois voltou a fechá-los, tanto é que Pinóquio não percebeu nada.
-E agora – perguntou a Raposa -, o que você vai querer fazer com essas moedas?
-Antes de mais nada – respondeu o boneco -, quero comprar para o meu pai uma bela jaqueta nova, toda de ouro e prata e com os botões de brilhantes, e depois quero ir para a escola e começar a estudar para valer.
-Olhe só para mim! - disse a Raposa. - Por causa da minha paixão tola pelo estudo, perdi uma perna.
-Olha só para mim! - disse o Gato. - Por causa da minha paixão tola pelo estudo fiquei cego dos dois olhos.
Enquanto isso, um Melro branco que estava empoleirado sobre a cerca à beira da estrada cantou como de costume e disse:
-Pinóquio, não dê ouvidos aos conselhos de más companhias, senão você vai arrepender-se!
Pobre Melro, teria sido melhor se não tivesse feito isso! O Gato, dando um grande salto, atirou-se em cima dele e, sem lhe dar nem ao menos tempo de dizer Ai, devorou-o de um só bocado, com as penas e tudo.
Depois de comê-lo e de limpar a boca, fechou novamente os olhos e voltou a se fazer de cego como antes.
-Pobre Melro – disse Pinóquio ao Gato -, por que você o tratou tão mal?
-Fiz isso para lhe dar uma lição. Assim, da próxima vez, ele vai aprender a não se meter nas conversas dos outros.
Já tinham andado mais da metade do caminho quando a Raposa, parando de supetão, disse para o boneco:
-Você quer dobrar as sua moedas de ouro?
-Como assim?
-Você quer que essas cinco miseráveis moedas de ouro virem cem, mil, dua mil?
-Pudera! De que jeito?
-De um jeito muito fácil. Em vez de voltar para casa, você deveria vir conosco.
-E aonde vocês querem levar-me?
-Ao País das Antas.
-Pinóquio pensou um pouco, depois disse com determinação:
-Não, não quero ir. Agora já estou perto de casa e quero ir para casa, onde meu pai está esperando-me. Quem sabe, pobre velho, como ficou ansioso ontem quando não me viu voltar. Infelizmente fui um mau menino, e o Grilo-falante tinha razão quando dizia: “Os meninos desobedientes não conseguem nada de bom neste mundo”. E eu aprendi isso às minhas custas, porque muitas desgraças me aconteceram, e ontem à noite, na casa de Comefogo, corri perigo...Brrr! Me dá um arrepio só de pensar!
-Então – disse a Raposa -, você quer mesmo ir para casa? Então vá, e pior para você.
-Pior para você! - repetiu o Gato.
-Pensei bem, Pinóquio, porque você está virando as costas para a sorte.
-Para a sorte! - repetiu o Gato.
-As suas cinco moedas de ouro de hoje para amanhã teriam virado duas mil.
-Duas mil – repetiu o Gato.
-Mas como é possível que virem tantas assim? - perguntou Pinóquio, ficando de boca aberta de tão estupefato.
-Já vou explicar para você – disse a Raposa. - É preciso saber que no país das Antas tem um campo abençoado que todos chamam de Campo dos Milagres. Você cava neste campo um pequeno buraco e coloca dentro dele, por exemplo, uma moeda de ouro. Depois você cobre o buraco com um pouco de terra, rega-o com dois baldes de água de chafariz, joga por cima um punhado de sal, e, no fim da tarde, você vai sossegado para a cama. Enquanto isso, durante a noite, a moeda de ouro brota e dá flor e, na manhã seguinte, ao levantar, você volta para o campo e o que você encontra? Encontra uma bela árvore carregada de tantas moedas de ouro quantos são os grãos de trigo de uma bela espiga no mês de junho.
-Então vejamos – disse Pinóquio cada vez mais atônito -, se eu enterrasse naquele campo as minhas cinco moedas de ouro, na manhã seguinte quantas moedas de ouro eu encontraria?
-É uma conta facílima – respondeu a Raposa -, uma conta que você pode fazer na ponta dos dedos. Suponhamos que cada moeda dê um cacho de quinhentas moedas; faça quinhentas vezes cinco e na manhã seguinte você vai encontrar no seu bolso duas mil e quinhentas moedas ouro brilhando e tinindo.
-Oh, que bom! - gritou Pinóquio, dançando de alegria. - Assim que eu tiver colhido essas moedas de ouro, vou ficar com duas mil para mim e vou dar as outras quinhentas de presente para vocês dois.
-Um presente para nós? - Gritou a Raposa indignando-se e dizendo-se ofendida. - Deus me livre!
-Me livre! - repetiu o Gato.
-Nós – prosseguiu a Raposa – não trabalhamos por interesses mesquinhos, nós trabalhamos unicamente para enriquecer os outros.
-Os outros! - repetiu o Gato.
-Que pessoas de bem! - pensou Pinóquio consigo. E, esquecendo-se na mesma hora do seu pai, da jaqueta nova, da Cartilha e de todas as suas boas intenções, disse para a Raposa e para o Gato:
-Vamos logo. Eu vou com vocês!
PS. Faça as conjecturas, veja se essa história faz sentido ou não, e tome cuidado, as Raposas e os Gatos continuam por aí).
Li no site do
Pr. Ricardo Gondim...