Ela acordou e o sol já havia sumido do céu. Chegara em casa exausta, com suas pernas formigando de tanto andar nos saltos de um lado pro outro durante toda aquela sexta-feira suja.
Abriu a janela e, como sempre, se perguntara se fazia um café ou se preparava o jantar. Olhou-se no espelho e viu o reflexo de alguém que sonhava ser quando era criança. Era bela, mas desprovida de viço. Era um subproduto da moda e do conceito de beleza comercial do mundo. Fora enganada pelo falso glamour da vida no Rio de Janeiro.
Enquanto fazia o café, foi levada por alguns instantes na memória até a cidadezinha no interior de Minas Gerais de onde veio. Lembrou do cheiro do café roceiro, em que se cozinha o pó ao invés de somente coá-lo com água quente. Lembrou do coador de pano, do perfume da manteiga feita pela avó, derretendo sobre o aipim cozido e do odor do bolo de fubá com erva-doce.
Os odores da fazenda lhe lembravam de tudo, menos pureza e tranqüilidade. Logo, o clima bucólico e agradável mudou em sua mente. Lembrou dos abusos e violência de seu padrasto, que a usava de madrugada e a largava com ameaças e xingamentos. Criticava suas roupas na frente dos outros para manter a pose de moralista, enquanto gritava sem pudores que ela, só daria mesmo para ser p#t@ na cidade grande!
Acordou daquele pesadelo quando o apito da cafeteira soou.
Engoliu o café, tomou um bom banho, vestiu seu lamê e foi à luta na orla de Copa.
A brisa oceânica lhe cortava o rosto que lhe aparentava talvez uns dezesseis, mas sabia que o peso dos vinte e quatro estavam sendo cobrados pela vida. Vivia pernoitada quase sempre, por isso descobriu as drogas. Elas simulavam o conforto dum descanso e a energia pra trabalhar, encarando os caras que a intimidavam com olhares sujos, como objeto de desejo, ou pedaço de carne em varal de açougue.
Às vezes se sentia suja... usada. Mas aí lembrava que hoje se julgava livre dos males daquele traste que a vida lhe fez de padrasto.
Quase sem querer notou um belo rapaz que fazia sua malhação naquela hora ali na orla. No Rio é assim, qualquer hora é tempo de aproveitar a areia da praia, nem que seja pra deixar o corpo em dia, já que sua mente estava longe...
Ela o abordou e ofereceu-lhe seus serviços... Foi ignorada!
Pasma, reposicionou-se em frente ao rapaz, tocou-lhe o rosto com pose de ‘femme fatale’ e disse:
- Tá a fim de um programinha, gostosão?
- Oi, desculpa... Nem te vi... O que disse?
Ela irou-se com o descaso, mas continuou:
- E aí, quer agitar hoje?
- Poxa, foi mal, sou compromissado!
Ela soltou uma gargalhada desprovida de alegria, porém sonora.
- Não estou querendo saber da tua namorada, garoto! Quero fazer um programa... E aí? Topa ou não?
- Eu não tenho namorada, falei de outro compromisso, emendou ele.
- Gay? Que desperdício! Falou ela meio sem pensar...
Agora era ele quem gargalhava ruidosamente.
- Nãããão... Sou macho mesmo, ok?!
- Ué... isso que dá ficar só de malhação... Exercitou o corpo e a mente endoideceu, alfinetou ela. Você disse ser compromissado...
- Eu disse pra você que tenho compromisso, não disse nem que sou gay, nem que tenho namorada. Você é que deixou a vida te fazer isso, que nem tempo para entender uma frase você tem!
Dizendo isso, levantou-se enquanto limpava o excesso de areia que lhe agarrava o corpo e vestia a camiseta que estava sobre o “case” do violão de 12 cordas que tocava como poucos.
Ela, por sua vez, estava vermelha de ira! Tomada pela vergonha da verdade que tomou pela cara.
- Garoto estúpido! Disse e saiu desbaratada...
Ele sorriu, mas não de alegria... Sabia que a tocara de alguma forma.
- Hei... Peraí!
Ela sem entender a si, virou-se e atendeu ao chamado. ‘Será que ele desistiu de me esnobar’? Pensou em voz baixa...
- O que você quer playboy?
- Não sou playboy coisa nenhuma, se você olhar naquela direção, lá no alto e focar os olhos, verá aquele luzinha laranja lá no morro... É lá que moro!
- Na favela?
- Isso mesmo! Trabalho aqui perto, faço faculdade noutro bairro, congrego aqui em Copa e moro na favela, disse enquanto sorriu fazendo seu rosto iluminar.
- E aí, porque me chamou? E que troço é esse de ‘congregar’?
- Te chamei, pois estou indo encontrar uns amigos e queria mesmo te convidar para dar uma chegada lá comigo.
- Uma festa?
- Mais ou menos... respondeu ele.
- Meu tempo é dinheiro cara e eu ainda não sei o que é essa coisa de ‘congregar’...
- Bem, sou o que você chamaria de ‘crente’ e congregar é estar perto de quem possui a mesma fé... Ou não, sei lá... Disse isso sorrindo meio sem graça pela explicação um tanto evasiva.
- Ta me chamando pra ir ‘na’ igreja, ou pra sair? Se for pra igreja, tô fora, nem pensar! Se for pra sair, pode desembolsar 100 contos adiantados, pois percebi que tu é doido!
- Ok, e se eu pagar pelo seu tempo? Teoricamente você num perde grana e ainda pode vir comigo... Num vou deixar de ser ‘cliente’, e aí, te levo pra onde eu quiser, que tal?
Ela ficou espantada com a insistência do crentinho, também ficou caidinha com o charme dele e pelo seu jeito simples e honesto de ser. Já que iria ganhar uma grana, decidiu ir à tal ‘congregação’...
Chegou lá constrangidíssima, achava que suas roupas não condiziam com uma igreja. Ele percebeu e disse; - Fica tranqüila, cê tá ‘em casa’...
Ela sorriu sem jeito, mas fora contagiada pela alegria daqueles jovens naquela noite de sábado. Eles tinham uma cara bem descolada pra crentes, mas o que mais a tocou foi ver o modo como aquele rapaz vivia sua vida sem os vínculos religiosos que ela cria ter um ‘crente’, principalmente pelo carinho que ele a tratava e pelo amor que possuía. Foi aí que ela entendeu o que ele quis dizer com ‘compromisso’... Não era com ninguém menos do que com Deus!
Analisou a sua vida e quando percebeu, estava mergulhada em lágrimas. Não era autocomiseração, era tristeza profunda por perceber que nunca fora feliz de verdade.
Pensou em sair correndo dali e foi o que fez assim que fecharam os olhos em prece. A orla nem era tão longe assim... Enxugou o rosto choroso, refez a maquiagem pesada no retrovisor dum carrão parado na esquina da Rua Nossa Senhora de Copacabana e foi correr atrás do prejuízo de ‘perder’ aquelas horas ali...
Não conseguia abordar ninguém. Os carros passavam, os convites chegavam, mas ela permanecia fixa naquele ponto da praia. Percebera que fora contaminada pela liberdade que aquela gente parecia irradiar. Eles eram livres mesmo, pensou. Eles estavam felizes em ser quem eram. Quanto tempo ela não estava feliz em ser ela mesma?
Ao olhar do outro lado da rua, notou aquele rapaz com semblante compenetrado, parecia balbuciar alguma coisa. Ele atravessou a rua quando se julgou preparado e reencontrou-a.
- O que faz aqui? Vá pra sua igreja! Vá ‘louvar’...
- Estou cultuando a Deus aqui mesmo com você!
Mesmo sem entender ela disse:
- Cara, vai viver sua vida, ta?
- Não conseguiria vivê-la se não te ajudasse a ser livre de quem o mundo te fez ser... Respondeu carinhosamente.
- Não quero ser crente, disse indignada!
- Não é esse o convite que tenho pra lhe fazer. Vim te oferecer Vida, e Vida abundante. Essa Vida que eu também já achei! Continuou seu sermão de beira de praia dizendo; Jesus nunca julgou a ninguém, pois possuía amor para entender cada pessoa como se fosse a única vida na Terra. Ele entende você e por isso te ama... muito!
As lágrimas voltaram a percorrer o rosto da garota, enquanto era abraçada pelo rapaz sentia o Amor sem interesses percorrer seu corpo, partindo de seu sofrido coração. Permitiu-se deixar Alguém entrar em sua vida. Desbloqueou as travas que a impediam de ter fé em si mesma e laçou-se naquele momento.
Hoje, ela encontrou a liberdade que tanto queria. Sua vida não é mais uma sucessão de tristezas, mas uma busca de resgatar quem Deus queria que ela fosse desde o principio. Não se sente uma religiosa. Foi escrava da vida tanto tempo que decidiu ser livre e dar a direção de sua vida a quem a conhece melhor que ela mesma. Ela busca a liberdade das regras sem sentido, observando a Graça como ponto crucial de sua caminhada.
Agora quando se olha no espelho vê alguém que ela realmente sempre quis ser...
Feridas? Bem, existem marcas...! Nem de perto há nela o semblante preocupado de antes. Ela ainda pensa em sua terra natal quando sente cheiro de café fresco, mas agora sonha em visitar a parentela pra apresentar a sua família!
Ah, ia me esquecendo... Faz mais ou menos dois anos que se casou com o rapaz da praia. Ela o ama e sente ser correspondida. Estão aguardando a chegada de seu primeiro filho e decidiram chamá-lo de Victor, afinal, a vida venceu a morte e uma nova história se fez!
Wendel Bernardes.