Como surgiu Café com Leite Crente?

Café com Leite Crente surgiu dos sonhos de Adriana Chalela (A Razão da Esperança), Regina Farias (Bora Ler) e João Carlos (Pastor João e a Igreja Invisível). Três amigos virtuais e irmãos em Cristo, separados por milhares de quilômetros mas que compartilham da mesma visão do Reino de Deus, Reino este que começa aqui na Terra e continuará por toda a Eternidade. Devido às nossas afinidades, decidimos unir nossos esforços para mostrar que é possível sermos 100% cristãos, mas com os pés 100% no chão, vivendo uma espiritualidade madura e responsável sem perder o amor pela vida que fomos graciosamente presenteados por nosso amoroso Pai.

Só que a família cresceu! Pelo Caminho conhecemos mais três irmãos maravilhosos, com a mesma visão do Reino: René Burkhardt (Nem de Paulo nem de Apolo: de Cristo!), Cláudio Nunes Horácio (Susto de Amor) e o "atrasildo" do Wendel Bernardes (Cinema Com Graça), que agora fazem parte desta gangue...


terça-feira, 30 de novembro de 2010

Defendendo uma masculinidade não sexista



Masculinidades e evangélicos: fazendo o caminho em terrenos acidentados


Não sei se acontece com você, não sei se você sente o mesmo; observo cada vez mais homens desconfiando de outros homens, vendo-os como inimigos, como obstáculos, ou no máximo como instrumentos, como meios. (...) Vejo cada vez mais homens cegos pela ambição, não lhes importando a que preço (...) têm que pagar para ter. (...) Quando há tão pouca solidariedade, tão pouca empatia, tão pouca camaradagem entre os homens, estamos mal, meu irmão.
— Sergio Sinay, Carta aberta de um homem a outro homem

A. A situação
Na grande maioria de nossas igrejas subsiste uma linguagem unicamente masculina sobre Deus. Invisibilizam-se as mulheres ao não se adotar a inclusividade na linguagem.

Bem dizia Friedrich Schleiermacher, “tudo que é preciso reconhecer na hermenêutica é unicamente a linguagem”. (Gadamer, 2007: 460)

Nossas interpretações do texto sagrado — e suas consequentes ações pastorais — dependerão muito da linguagem e da forma de verbalização que adotamos quando nos aproximamos do texto.

A linguagem exclusivamente masculina para se referir a Deus levou ao androcentrismo que, nas palavras de Nancy Bedford, é “aquela cosmovisão segundo a qual o homem ou uma idealização do mesmo é colocada consciente ou inconscientemente como norma ou parâmetro da realidade, incluindo a realidade de Deus” (2008:64). O androcentrismo leva ao machismo.

Como se sentem os homens evangélicos diante do androcentrismo e o machismo imperantes?

Muito poucas vezes nos fizemos estas perguntas de maneira honesta, e muito menos compartilhamos em grupos de homens sobre como nos sentimos como tais. Tradicionalmente, os grupos de homens nas igrejas se circunscrevem a prestar contas, termo que supõe um imaginário de “trazer à luz para que vejam como passei a semana; receber repreensões com ‘genuíno amor cristão’ e conselhos sobre como me conduzir”. Sem reparar que dentro de cada homem há alguém que, de uma maneira ou outra, tem sentimentos que, muitas vezes, não os expressa por temor de que sua hombridade seja considerada diferente da que se espera.

Estamos nos deixando ser interpelados?

O relato do encontro da mulher cananéia com Jesus de Nazaré em Mateus 15, 21-28 pode nos ajudar a entender que os homens nem sempre têm a última e única palavra, como a cultura patriarcal nos ensinou. No relato indicado, Jesus nega a esta mulher, a princípio, a cura de sua filha enferma chamando-a praticamente de “cachorra”, termo desrespeitoso com que os judeus se referiam aos pagãos (Mateus 15, 26). Isto revela o racismo imperante que aprendeu de sua cultura. Mas Jesus está disposto a escutá-la e deixar-se interpelar por ela. A mulher confronta as palavras que Jesus lhe disse e, graças a ela, o ministério de Jesus muda radicalmente. A mulher cananéia — que não chegou até nós seu nome através dos evangelhos — lhe responde, dizendo: “Mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores” (v.27b). Finalmente, Jesus ressalta a fé da mulher e concede a cura à sua filha atormentada (De La Torre, 2010).

A compreensão começa ali onde algo nos interpela (Gadamer, 2007: 369). Deixar-se interpelar é renunciar à hegemonia de querer ter respostas para tudo. Nós, homens, somos bombardeados com a premissa de que somos os escolhidos divinos para buscar alguma maneira prodigiosa de resolver as coisas (à la MacGyver). Aqueles homens que não cabem no modelo hegemônico são presa de críticas e desonras. Suas masculinidades são medidas pela lei do mais forte e por uma escala meritocrática.

Escutar é se perguntar, é se conectar com o outro ou a outra em busca de respostas. Ao escutar, descobrem-se e abrem-se possibilidades. Como homens, o modelo hegemônico patriarcal exige de nós não escutar e a ter uma chave-mestra para tudo.

B. Um problema: o dualismo nos papéis de gênero
O dualismo nos papéis de gênero tem levado a teologias discriminatórias e a conceitos complementaristas quanto aos papéis de gênero. O modelo complementarista parte da premissa de que, psicologicamente, homens e mulheres são diferentes; logo, segundo este modelo, cada sexo têm papéis distintos que cumprir na família e na sociedade.

Neste modelo complementarista, a responsabilidade do sustento econômico do lar é papel do homem, enquanto que à mulher se lhe outorga papéis reprodutivos e de cuidado “emocional e moral” dos filhos e filhas.

A paternidade é percebida de maneira reduzida, distante; enquanto que a maternidade é ampla, próxima. Ao pai se exige responsabilidade; à mãe, cuidado. O pai, segundo este modelo, deve infundir nos filhos e filhas o pensamento lógico; enquanto que se espera da mãe infundir carinho. Tudo isto está cuidadosamente construído para dar ao homem pleno poder de controlar o espaço público, sendo competitivo em relação a outros homens, e relegando a mulher ao espaço privado.

A consequência disto é que, em nossas igrejas, na maioria dos casos, os homens ocupam as posições de direção e relevância, enquanto que as mulheres ficam relegadas a um segundo ou terceiro plano, executando unicamente atividades dirigidas por homens.

C. Ter e adquirir consciência histórica de nossas identidades
A consciência histórica é um caminho de mão dupla: em primeiro lugar, leva-nos a ter consciência da alteridade do outro e da outra; e em segundo lugar, a ter consciência da alteridade do passado (Gadamer, 2007: 437).

Em nossas igrejas, nós, homens, não criamos espaços para adquirir consciência e cuidar uns dos outros; escutar-nos, deixar-nos provocar, contar histórias de vida e experiências.

As masculinidades são um terreno ainda não trilhado nos grupos de homens que se reúnem nas igrejas. Nas relações entre os homens predominam um “respeito” distante, sem proximidade, inter pares, funcionando automaticamente como dita o modelo hegemônico da masculinidade imperante. Os sentimentos são vedados e quem os expressa corre o risco de ser menosprezado.

As relações entre homens e mulheres em muitas igrejas baseiam-se no “cuidado” que é como os homens devem tratar as mulheres, lhes é dito. Um cuidado patriarcal — “como parte mais frágil” — que só aceita proximidade entre casais casados. É também um cuidado exacerbado em controlar a corporalidade das mulheres — “para que sejam prudentes e puras”. É o paradigma de que o homem é uma besta selvagem que necessita ser domesticada.

D. Bestas selvagens ou seres humanos?
O modelo hegemônico de masculinidade, ao qual se pretende que todos os homens alcancem, cria monstros. Tanto aqueles que exercem violência física ou verbal em relação a suas esposas, a outras mulheres e a outros homens, quanto aqueles que são considerados como tais por não se encaixarem no modelo: um modelo de homem forte, que não se altera, que não tem sentimentos e que demanda atenção sem se deixar interpelar. Aí ficam de fora, sem apreciação, muitos homens que, como destaca Mario Zúñiga Núñez,

são suscetíveis de se converter em monstros (maldade pura, irracionalidade absoluta, retraimento). O monstro se converte nessa Ovelha Negra que tentará ser absorvida para se apresentar como o triunfo do sistema, seja por sua derrota ou sua cooptação. De tal maneira que o sistema tentará dois caminhos: o primeiro será assassinar o monstro, assegurando um jogo do bem contra o mal (…); o segundo, a cooptação desse monstro, face à apresentação de um modelo (a ovelha negra que se converte em branca) (2008: 23).

A violência sistêmica é endossada pelo fundamentalismo bíblico imperialista, e convertida pastoralmente em desamor, concentrando seu poder vital no controle econômico e reprodutivo. A vida mostra-se, então, coisificada. Privilegia-se, por exemplo, a união de uma família e a reconciliação constante à saúde e salvaguarda de mulheres violentadas e maltratadas por seus companheiros.

E. Soldadinhos de chumbo teledirigidos ou como foi construído o sujeito masculino
O sujeito masculino foi circunscrito a um modelo hegemônico que manifesta sua subjetividade como símbolo de poder, dominação, atividade, superioridade e independência, considerado como paradigma da espécie humana.

Segundo pontua Ivone Gebara:

“Gênero” significa uma construção social, um modo de estar no mundo, um modo de ser educado ou educada e um modo de ser percebido ou percebida que condiciona o ser e o fazer de cada indivíduo… a relação de gênero foi e segue sendo a construção de sujeitos históricos submetidos a outros sujeitos, não só em virtude de sua classe social, mas por uma construção sócio-cultural das relações entre homens e mulheres, entre masculino e feminino (2002: 90-92 in Pimentel Chacón, 2008: 62).

Na teologia cristã, o corpo esteve moldado pelo dualismo platônico corpo-espírito. O corpo é percebido como reservatório do pecado, enfatizando a culpa que levou à necessidade de se conectar com a Divindade para alcançar o “homem novo” (espírito). O corpo masculino converteu-se, então, em paradigma médico e religioso, diminuindo o corpo feminino como diferença (não-homem).

Com a revolução sexual dos anos 1960, já em plena Guerra Fria, os símbolos corporais mudaram: o homem se converteu em provedor, protetor e líder, enquanto que a mulher passou a ser símbolo sexual comercializável, corpo que nutre, recebe e afirma a hegemonia do homem.

Tanto em homens como em mulheres, existe uma visão fragmentada de seus corpos. No homem, seu corpo esteve oculto detrás de seu eu: é ausência (rechaço da nudez frontal), enquanto que na mulher, seu corpo está sobredimensionado e oculta seu eu: é presença (Baltodano, 2006).

F. O modelo hegemônico de masculinidade e sua influência na e desde as igrejas
A teologia cristã tradicional enfatizou a supremacia do homem sobre a mulher e com ele, uma única e desejável maneira de ser e fazer-se homem. É necessário reconhecer que o paradigma do Deus cristão masculino foi capital para conformar, a partir da teologia, o modelo hegemônico de masculinidade.

Os relatos da bíblia que não se conformam ao paradigma imperante de gênero, ou são deixados de lado, ou só são tratados de uma perspectiva moralista. Uma teologia narrativa tanto na hermenêutica como na homilética pode nos ajudar a descobrir as diversas e múltiplas formas de ser homem.

Nós, homens, necessitamos nos escutar e compartilhar entre nós mesmos e com as mulheres como nos sentimos, refletindo sobre como chegamos a ser homens e como estamos vivendo nossas masculinidades.

Gênero não é só falar de mulheres; também é falar de homens.

A masculinidade hegemônica vai se construindo pouco a pouco nas igrejas, onde se contam para as crianças histórias da bíblia baseadas no poder e na violência como exemplos a imitar: Davi que derrota os seus inimigos; Sansão como paradigma do homem do Deus-forte; Jesus afeminado e de outro mundo, mais divino que humano.

Tristemente, nossas igrejas serviram como “entidades vigilantes” que constantemente cooptaram a corporalidade dos homens, exigindo-lhes compostura, força, repressão de sentimentos e cuidado da mulher frágil.

O modelo hegemônico de masculinidade rechaça toda a diferença. A maioria dos homens não cabe nesse modelo, mas têm que estar demonstrando constantemente e demonstrando para si mesmos que são homens, para não cair em uma menos-valia masculina (1). Os papéis de gênero ficam bem diferenciados: ao homem lhes são atribuídos os papéis de liderar, prover e proteger; enquanto que à mulher os papéis de afirmar (a liderança do homem), receber e nutrir (2).

G. Pautas pastorais
1. Que as igrejas sejam espaços libertadores e inclusivos. Toda pessoa é criação e semelhança de Deus, e merece ser acolhida, afirmada e respeitada em sua identidade.

2. Os ministérios na igreja são dons que Deus dá a todos e todas. Toda pessoa é livre para desenvolver o ministério ou trabalho que sentiu fazer na comunidade de crentes.

3. Que a educação sexual seja laica. É necessário se apropriar do corpo e saber disfrutá-lo, reclamando a autonomia na sexualidade e incidindo para que se legisle por uma paternidade e maternidade responsáveis (Baltodano, 2006).

4. Que as igrejas sejam comunidades de paz e respeito mútuo, onde o cuidado mútuo, a solidariedade, o amor e a acolhida sejam valores fundantes.

5. Animar, criar e fomentar grupos de homens nas igrejas comprometidos em ser vozes proféticas para denunciar a violência exercida contra as mulheres, sendo aliados com elas em suas lutas e demandas sociais.

Notas
* Trabalho apresentado na Consulta Latino-americana de Missão Integral, Relações de Gênero e Violência contra a Mulher. Rede Miquéias. Salinas, Equador, setembro-outubro de 2010.
(1) O termo é de Joan Guillermo Figueroa Perea (Pichardo Almonte, 2005: 176).
(2) Esta separação de papéis, tão daninha para as igrejas, fica exemplificada em livros como Recovering biblical manhood and womanhood. A biblical response to Evangelical feminism (John Piper e Wayne Grudem [editores]. Wheaton: Crossway Books, 1991).

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4 comentários:

  1. Dri,

    Nessa masculinidade não sexista, vejo Jesus. E, engraçado, já não tínhamos a orientação de imitá-lO? Falhamos feio, hein?

    Mas ainda há tempo! Se permitirmos Jesus viver em todos os cômodos do nosso coração, sem deixar nenhum com a porta fechada pra Ele, a gente chega lá!

    Abração e continue na Paz!

    Ah! Já descobriram por que a imagem do banner não tá aparecendo?

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  2. Querido e atencioso amigo,

    O problema do banner só poderei investigar no final de semana,infelizmente.
    Te aviso quando estiver tudo em ordem.

    Obrigada por tudo

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  3. Dri,

    Muito bom, muito bom!

    E o que eu acho impressionante no exemplo da cananéia é que Jesus quebra todos os paradigmas dentro daquela cultura.

    Era gentia(idólatra, pagã), cananéia(de um povo pervertido) e mulher(proibida de abordar homem em público, quanto mais um rabino, um líder religioso).


    E Ele quebrou todas essas barreiras machistas/racistas e ainda deu chance de um diálogo no qual ela rebate com veemência demonstrando coragem e discernimento.

    Ela nem nome tinha na passagem citada, mas Jesus deu-lhe total atenção, ficando impressionado não apenas com o seu amor, mas principalmente com aquela persistência(fé) em confiar que Ele tinha o poder de curar sua filha.

    Texto pra se ler e reler :) Várias vezes!

    Meu carinho.

    Rê.

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  4. Quando li, pensei em você.

    meu carinho

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