Nice era mulata formosa, daquelas que paravam quaisquer pagodes. Era carioquíssima da gema e da casca do ovo, como gostava de dizer ostentando um sorriso de perolado perfeito.
Conseguiu muitas de suas belas curvas nos sobe-e-desce das ladeiras das favelas. Isso mesmo; favelas no plural! Sua família honesta e temente a Deus, como dizia vó Maria, se mudava toda vez que o ‘bicho pegava’ na favela que viviam.
Então era começar tudo de novo; invadir o lote, cercar o terreno, arrumar madeira pro barraco, ‘chamar na mão’ com o martelo...
Era uma família matriarcal, sua vó Maria e sua mãe Joana, só conheceram homem na hora do ‘bem bom’ como diziam, depois estavam sozinhas na vida, sambando pra não cair. Mas quem disse que Nice se abalava? Cantava sempre um refrão positivo dum partido alto e lá ia agarrar a vida à unha!
Ela fazia de tudo um pouco; faxineira, manicure, arrumadeira, passadeira, etc., mas seu divertimento estava em frequentar a quadra da escola preferida nos ensaios técnicos da bateria. Seu coração parecia explodir ao som dos surdos e tamborins. Era verdadeiro frenesi.
Mas quer saber? Nice tinha dúvidas se a vida era apenas isso. Às vezes, quando chegava de um dia de trabalho, ou mesmo do samba, depois de driblar os barbados louquinhos por um pouquinho mais de seu molejo, deitava sua cabeça no travesseiro de retalhos que vovó fizera e contemplava a majestade do céu estrelado do alto do morro pela fenda duma telha. Aquela mesma que fazia jorrar água nas chuvas de verão (e de inverno também, né?), mas agora a fenda fazia-lhe viajar no infinito enquanto se perguntava quem teria composto essa samba de céu estrelado. Foi talvez a primeira vez que Nice perguntou-se realmente sobre Deus.
Semanas depois, durante mais uma das faltas d’água que assolava a favela, sambando com vasilhames como adereço de cabeça nas vielas, passou num beco e ouviu alguém cantando uma canção que não era um samba, mas que com a mesma alegria falava das maravilhas da criação e de como Deus as fizera, uma a uma...
Pôs de lado a pesada lata d’água e não se fez de rogada, cariocamente bateu palmas e gritou: “Ô de casa!”
Então uma velhinha, mais acabadinha que sua vó Maria lhe saudou com um sorriso meio desdentado, porém franco e sincero.
- Bom dia minha filha, disse a velhinha.
Nice foi direto ao ponto;
- Eu ouvi uma música que falava da natureza, e de como Deus fez tudo nela... a senhora...
- Seu eu canto? Perguntou satisfeita a velhinha.
- Na verdade eu já cantei minha filha, isso que faço hoje é mais um sussurro que canto... e riu de si mesma.
Mais uma vez, de forma direta disse Nice:
- Na verdade quis saber se a senhora é... crente!?
O sorriso da velhinha transformou-se numa gostosa gargalhada vinda da alma e disse:
- Sou crente sim, minha filha, mas já me chamaram também de ‘bíblia’, ‘beata’ e até de coisa muito pior, disse meio corada de vergonha.
-É que eu estava pensando Nele esses dias. Foi Ele mesmo quem criou o mundo? A mim ou a senhora?
- Foi Ele sim, minha linda, Ele me criou, fez a natureza e desenhou você e cada beleza de seu corpo e de seu coração.
Até então Nice não havia imaginado dessa forma, criada pelas mãos de Deus, isso daria um samba-enredo, pensou.
- A qual igreja a senhora pertence? Perguntou já meio sedenta doutra água que sua lata não poderia carregar.
- Sou de Jesus minha linda, mas quando minha pernas fracas permitem, congrego naquela igrejinha azul, perto da Biquinha.
Claro que Nice conhecia a tal Biquinha, afinal a falta d’água no morro num dava tréguas e era de lá que essa moça tirava água, da famosa Biquinha que nada mais era do que um ‘gato’ no encanamento público que servia à comunidade na hora do sufoco.
Decidiu deixar o pagode desse domingo pra conhecer mais do Deus compositor do samba mais belo que já havia sido composto: a vida!
Chegando lá, depois de se arrumar muito bem com seus breguetes como se fora ao ensaio técnico, sentou na frente pra procurar sua amiga, curiosamente não a encontrou.
Embora não conhecesse nadica de nada, achou linda aquela cantoria toda e o pastor falava, segundo ela, igual político que visitava o morro em época de eleição. Sentiu-se honrada de estar ali, principalmente, pois os ‘irmãos’ não a olharam como um pedaço de carne, como os caras do samba a olhavam.
Sem pensar duas vezes, levou seu molejo a frente do altar na hora do ‘apelo’, e chorou muito ao ‘aceitar Jesus’, pelo menos foi isso que o pastor disse que fizera ao ir lá na frente. Nice gostou.
Seu coração sincero batia ainda mais forte que cada bumbo da bateria da agremiação que frequentava...
Aliás, frequentava mesmo!
Deixou de sambar, parou de ir à quadra da escola. Agora sua rotina era ir aos cultos da igrejinha azul da Biquinha.
Aos poucos largou também seu molejo, suas roupas coloridas foram trocadas por vestidões retos e de cores sóbrias, sem decotes e lascas, como dizia o pastor, andando como ‘convém a uma serva do Senhor’.
Seu sorrisão perolado foi virando agora simples saudação com a cabeça. Os barbados que a seguiam nas ladeiras louvando a Deus por seu rebolado já não a perseguiam mais. Parecia que a igrejinha azul da biquinha ganhara mais uma fiel, mas que o morro perdera muito em não ver aquela alegria desfilando em suas vielas.
Tempos depois, Nice passou com sua lata na cabeça em frente a casa da velhinha que não vira mais. Havia ainda lá uma janela aberta onde uma senhora, bem mais jovem que a velhinha, lhe explicou que Dona Selmira, havia ido cantar seus louvores mais perto de Deus.
Nice entristeceu-se e contou àquela senhora, que julgou ser filha da velhinha, de seu encontro com a doçura que recebera dela.
A senhora com olhos lacrimejantes disse:
“-Então é você?”
Tirou de dentro dum bibelô papelzinho dobradinho várias vezes, meio mal escrito dizendo:
“Mulatinha, nunca deixe de encontrar o Criador em seu coração, é lá que mora tanto Ele, quanto a alegria que Ele mesmo te deu ao nascer!”
Agora eram duas a chorar!
Nice entendeu o recado.
Havia encontrado o maior Tesouro do mundo, mas perdera a alegria e o desejo de manifestar quem Ele é no sorriso sincero que sempre carregara.
Deu uma guinada na vida e percebeu, mesmo com respeito e devoção, que achar o Criador não era perder o que Ele criara!
Hoje em dia Nice samba em louvor ao Senhor que lhe criou e lhe deu vida, e sabe que em seu coração há um bem maior que tudo que o mundo pode dar.
Seu sorrisão está mais brilhante do que nunca, e agora quando olha pras estrelas na mesma fenda do barraco, sabe de onde vem seu ‘brilho interior’, sua alegria, sua paixão pela vida.
Vem do Criador!
Moral da história:
A religião engessa as curvas e o molejo alegre que Deus criou, mas o contato com Ele, liberta de tudo!
Wendel Bernardes.
Wendel...
ResponderExcluirVocê me fez chorar cara, matou a pau, arrasou, abalou seu Bangú véio de guerra (não podia perder a oportunidade)...
Lindo demais, que você continue sendo instrumento de Deus para abençoar aqueles que estão próximos de você, pessoal ou virtualmente como nós.
Amplexos parabólicos!
JC
ILE W.
ResponderExcluirPois é...
A religião é tão opressora/repressora que faz qualquer um perder o rebolado...
A parte boa é que há sempre uma chance de ser feliz de novo :)
Quanto à beleza de texto, tanto em estilo literário como em conteúdo, cada vez mais me surpreende e me alegra.
Que Deus continue te iluminando,
R.
p.s.: e quando estiver famoso mundialmente vê se consegue se lembrar dos amigos simples daqui dessas paragens...
Valeu Little Jonh,
ResponderExcluireu me sinto tão abençoado pela nossa comunhão pessoal/virtual, que creio que posso 'receber' esse carinho, mesmo não sendo digno.
Agora, essa parada de abalar Bangu... melhor não, viu? Com esses últimos abalos mundiais, melhor meu Banguzinho véi de guerra ficar paradinho no lugar!
srsrsrsrsrsr
Ih, escrevi John errado...
ResponderExcluiré o teclado analfa que a Bispa me emprestou!!!!
Bispinha do meu coração...
ResponderExcluiro dia que eu for 'famoso mundialmente' volto aqui só pra dar tchau... rsrsrsrsrsrs
Eu fico feliz em saber que as 'crônicas' têm tido algum tipo de serventia, me alegro igualmente em saber da 'qualidade', pois nunca fui 'escritor' de nadica de nada!
Valeu pelas palavras!
P.S.- Religião é fogo mesmo gente!
Interessante, ILE!!! Acabei de ler um texto do Caio (“BOATE EVANGÉLICA, CERVEJA SEM ÁLCOOL...” – Não é o mundo na igreja?), que trata dessa questão da confusão que se faz entre 'mundo', 'igreja', 'isto é santo', 'aquilo não é santo'. Ele discorreu com maestria sobre o verdadeiro Evangelho. Você apresentou com maestria literária a essência dele!
ResponderExcluirAbração e Paz!
Oi Apóstolo René, como vai?
ResponderExcluirEu creio que Deus usa Seus meios para nos lembrar ou fixar coisas que precisamos entender em minúcias, para num determinado momento, 'usar-nos' como canais para fazer chegar esse mesmo conteúdo a quem precisa...
Quem sabe foi isso que aconteceu com o texto que você leu do Caio e a crônica da Nice...
Eu realmente não conheço a matéria do Caio, creio que deve ser bem legal baseado no conteúdo das várias outras matérias do mesmo, e entendo que se mesmo sem tê-la lido, escrever algo com o mesmo fim, devemos estar mirando no mesmo alvo!
De certa forma, isso me honra muito!
Abração René!
KARAKAS! Meu fio do céu! Tu num pode parar de fazer isso nunquinha, escreva, escreva e escreva! Maravilhoso! Acho que todos nós já vimos muito isso, graças a Deus já não tem sido assim, mas por desgraça também não têm conhecido o Evangelho e sim outro evangelho. Wendel, arrasou mano! Forte abraço (amplexo parece comprimido JC kkk) Valeu.
ResponderExcluirrsrsrsrsrsr
ResponderExcluirValeu Cláudio,
tô aqui roxo de vergonha...rsrsrsrsrs
Mas eu creio que, sempre que possível, devemos lembrar das muitas 'aflições' a que são submetidos os neófitos quando seguem alguns filões religiosos/denominacionais de 'extrema esquerda'...
Valeu por tudo Cláudio,
o elogio foi pra cruz! rsrsrsrsrsr
KARAKA meu bom velhinho!Já li as outras cinco crônicas que vc me enviou, mas essa "fechou o barraco!".
ResponderExcluirSimplesmente "ESPIRITUAL!!!"
Não sei se me identifiquei mais com o "partido alto" que são os meus preferidos, ou com a retomada da vida sem as caretices da religião como acontecido com a mulata.
Velho, a religião estrangula a "vida criativa e leve de Deus" no ser humano, fazendo com que as pessoas se transformam em alienígenas espiritualizados.
Essa crônica que eu não sei se é baseada num fato real, carrega consigo a realidade de muitos que agora dentro de uma religião se desumanizaram e ficaram mais incrédulos do que antes de se tornarem "protestantes".
Show de bola cara! "A religião engessa as curvas e o molejo alegre que Deus criou, mas o contato com Ele, liberta de tudo!"
Que mais gente se "desencane" dessa espiritualidade que só contribui para deformar o que o PAI criou com tamanha beleza!
Partidos Altos Fraternos pra tú, meu cronista com traços potenciais a pecha de Herege!
Meu mano Frank,
ResponderExcluira vida de Nice foi isnpirada um pouquinho aqui, um tantinho alí, mas a 'Nice' descrita no texto não é uma pessoa, mas uma personagem criada a partir de fragmentos da vida de muita gente daqui do Rio, viu?
Eu fico muito feliz em saber que você achou o texto 'espiritual', acabei relendo os comments dos outros amnos também e acabei me emocionando... rsrsrsrs
Sei que o Senhor tem a necessidade de quebrar o gelo, ou o gesso, formado pelos homens ao longo dos séculos (e por que não dizer milênios) através da religiosidade.
Tomara que o texto sirva como ferramente...
valeu cara!
E herege sou mesmo, obrigado!
KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
Bem interessante! Parabéns!
ResponderExcluirGostei bastante do conto e o descobri através do blogue Conexão Graça do meu amigo Franklin que resolveu divulgar nossos textos em sua última e recente postagem.
Como encontrar Deus? Aonde? Em qual igreja? Ou em qual quadra de escola de samba? Fica aí o recado da velhinha:
"Mulatinha, nunca deixe de encontrar o Criador em seu coração, é lá que mora tanto Ele, quanto a alegria que Ele mesmo te deu ao nascer!"
Que sejamos atentos para não permitirmos que a religião acabe com "as curvas e o molejo alegre que Deus criou".
Abraços.
Rodrigo, fico feliz que tenha curtido o texto...
ResponderExcluirBom também poder ter contato com você...
Valeu por tudo e que deixemos a religiosidade de lado e abraçemos o novo de Deus!